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A TAPEÇARIA - CONTO

AUTORA: ANGÉLICA NOGUEIRA


pintura de Rachel Lima

A TAPEÇARIA

Autoria: Angélica Nogueira


Deitada no sofá, em profundo sossego, respiração compassada, dona de uma serenidade imperiosa e inescrutável. Lia seu livro predileto - um romance - como fazia todas as noites, antes de ir se deitar. Por um momento, seu olhar longínquo de paz, penetrara a pintura na parede oposta.

Fora algo, assim como, uma viagem no tempo. Sentira que estava naquele jardim intenso e fresco, ao cair da tarde, acompanhada daquela mulher que a fascinara. A impressão que lhe ficara é de que era uma deusa - alma iluminada e bela. Não a beleza que passa com os anos, ao contrário, ela se tornava mais encantadora com o passar do tempo, com a experiência e a sabedoria, afloradas. Na mesa de madeira retangular, a toalha de seda florida e macia acariciava sua pele. Sentira o sabor e o aroma cítrico do chá das cinco. Imaginara que estava em Londres. Suave vento sul penetrara seu corpo.

Súbito a mulher dissera: - Vamos? Saborear o momento, agora. Observar a beleza da natureza, o brilho das estrelas, o canto dos pássaros. Era tudo o que ela mais adoraria fazer.

- Precisaremos tomar cuidado para não nos aproximar da área da caçada- Dissera a mulher.

- Sim. Ela respondera.

Saíram as duas mulheres a caminhar entre arbustos, em meio a floresta, entre caminhos sinuosos, jardins floridos, e nessa época do ano, a grama coberta por milhares de flores de jacintos azuis, o que transmitia um tom mágico a paisagem.

- Você reparou na tapeçaria na Sala de Estar? É um tapete persa, muito valioso, feito manualmente, todo trabalhado com fios de seda e lã. A imagem estampada é reprodução de uma de nossas caçadas, com nossos antepassados.

- Sim, é magnífica e chamou-me muito a atenção. Preciso te contar que fiquei um tanto instigada com a imagem do caçador em primeiro plano, com sua barba parecendo serpentes, seus músculos tensos, a espera da caça. Senti como se ele quisesse sair da pintura e tomar vida. Fiquei muito impressionada.

- Sim querida. - Conte-me mais, estou muito interessada, pois já ouvi uma estória parecida.

- Confesso que durante a semana tenho sonhado com ele. Sinto que esse caçador, em particular, está se debatendo contra a parede e penetrando nas densas folhagens do jardim, percebo suas botas pisando a lama escura e viscosa, seu sorriso aberto e perverso, seu olhar penetrante e atento, em busca de acertar a presa. Ele me dá arrepios! - Ela continuou a descrever seus sentimentos e apreensões, pois precisava desabafar e a sábia mulher estava pronta a escutá-la:

- Ao mesmo tempo, sinto uma certa atração, que não sei de onde vem, nem porquê. Chego a sentir o seu cheiro de suor escorrendo pelo pescoço, umedecendo suas vestes. Fico a imagina-lo em minha cama, me atacando, como se eu fosse a presa que ele quer acertar.

- Ah! minha querida, quanta imaginação! Talvez haja uma explicação. Você acredita em espíritos de outro mundo? - Na França tem se falado muito sobre esse assunto. Ou quem sabe poderia ser algo da sua mente? Ouvi falar em um neurologista austríaco chamado Dr. Sigmund Freud, que está fazendo pesquisas na área da psicanálise. Tenha a certeza de que se não cessar esse incômodo, vamos procurar ajuda. Agora, voltaremos e tomaremos um chá de camomila, para que se acalme.

À noite, foram dormir e novamente ela tivera o mesmo sonho com o caçador. Descera a escadaria até alcançar a sala de estar e tocara a tapeçaria. Sentira como se a mão do caçador estivesse puxando-a para atravessar para o outro lado e ela se debatia para não ser carregada. Súbito, ao sentir o calor do toque de sua mão, sua vontade foi de estar com ele, sentir suas mãos fortes em seus cabelos, sua pele, seu corpo. Em dúvida, pensou: será que atravesso... será que me deixo levar... será... Uma força maior do que ela a impelia a ceder.

Pela manhã, a mulher a encontrara, com as mãos esticadas, a tocar as mãos do caçador, caída ao lado da tapeçaria.

Quando deu por si novamente, sentia um vapor febril, abriu os olhos, estava em seu sofá, olhou a pintura na parede oposta, e respirou profundamente. Tudo parecia tão real! Se levantou para pegar um copo d’água, quando viu pegadas de lama no assoalho de madeira...

***Conto dialoga com o conto “A Caçada” de Lygia Fagundes Telles no Livro "Antes do Baile Verde."


 
 
 

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